Mais uma vez as chuvas trouxeram catástrofes para nosso estado. Desta vez as vítimas habitavam a Região Serrana, ano passado Niterói. Além da causa, as duas tragédias tem outra semelhança, moradores de encostas foram dramaticamente atingidos, perdendo casa, emprego e família.
Como no ano passado, as autoridades culparam as vítimas por morar em áreas de risco. Não vamos aqui defender a ocupação de terrenos perigosos, nosso assunto é outro. Queremos questionar por que parte da população carioca constrói suas moradias nestes locais.
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Desde a Lei de Terras, em 1850, a principal forma de aquisição da propriedade da terra no Brasil é a compra, acompanhada de outras formas como a herança. Esta lei transformou a terra em propriedade privada, ao contrário do que ocorria até então. Hoje, a propriedade é um direito garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil. Nos cento e sessenta e um anos que passaram depois desta data, poucos brasileiros conseguiram tornar-se donos de terras. É fácil entender o porquê quando observamos a distribuição de renda em nosso país.
O quadro acima mostra como a apropriação da renda ocorreu de de maneira desigual ao longo de vinte anos. Os dados para os anos anteriores a 1981, ainda no século XX, são diferentes, mas não muito animadores, os 10% mais ricos detinham aproximadamente 40% da renda nacional em 1960. Indícios do século XIX, poucos anos após a criação da Lei de Terras, apontam que no Rio de Janeiro os mais ricos apropriavam cerca de 60% da riqueza.
Com a concentração de renda e o acesso à terra por meio de compra, uma parcela enorme da população não possui condições financeiras para adquirir propriedade, seja para plantar ou para morar. O problema ocorre no campo tanto quanto nas cidades, apesar de ser maior nas cidades. Como não há a possibilidade de “não morar” ou simplesmente sumir por não ter uma propriedade, estes brasileiros habitam os locais que encontram disponíveis, de modo geral sem saneamento básico ou outros serviços públicos, e muitas vezes em áreas de risco.
O Ministério das Cidades elaborou um estudo em 2003 sobre o déficit habitacional no Brasil, calculando a quantidade de domicílios rústicos1, dos improvisados e da coabitação familiar. Foi constatado um déficit habitacional de 5.890.139 domicílios, sendo 4.140.088 em áreas urbanas e 1.750.051 em áreas rurais. Enquanto isso, temos 6.029.756 de domicílios vagos (desocupados ou usados ocasionalmente).
1 Domicílios rústicos são aqueles localizados em construções onde predomina paredes e cobertura de taipa, sapé, palha, madeira não aparelhada, material de vasilhame usado e piso de terra batida.
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A constituição de 1988 garante o direito de propriedade como algo fundamental para a cidadania, mas como vimos, muitos cidadãos não tem acesso a esse direito, mesmo o déficit sendo menor que a quantidade de domicílios vagos. Mas esta mesma constituição estabelece que a propriedade deve atender uma função social.
Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Com base nisso, movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) revindicam uma solução para o problema que acompanha o Brasil desde o século XIX, pelo menos. O MST é o mais conhecido destes movimentos e atua nas áreas rurais, na maior parte das vezes por meio de invasão de terras improdutivas e pressionando o governo a implementar um projeto de reforma agrária.
Por não cumprirem sua função social, as terras improdutivas podem ser desapropriadas pelo governo, mediante pagamento de indenização ao proprietário.
As invasões de terras e mesmo as tentativas do governo e de parte dos legisladores para desapropriar ou avançar no processo de reforma agrária encontram resistência de proprietários de terras organizados em instituições como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a União Democrática Ruralista (UDR). Estas instituições também pressionam o governo e tem legisladores trabalhando por leis que defendam seus interesses.
O embate, porém, torna-se mais dramático em determinados momentos, quando ocorre violência entre os dois lados. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, entidade ligada à Igreja Católica que trabalha junto aos trabalhadores rurais desde 1975, o número de casos de violência contra a ocupação ou posse em 2009 foi de 751, com 25 assassinatos, 1841 famílias expulsas, casas e plantações destruídas.
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Nas cidades o problema tem outra forma. Desde o século XIX começou a surgir no Rio de Janeiro, nos morros próximos às áreas urbanizadas, o processo de favelização. Escravos fugidos ocupavam quilombos periurbanos, onde podiam viver e arrumar trabalho, misturando-se com a população de escravos que viviam na cidade. Eram caçados pela polícia do Rio de Janeiro, mas contavam com a proteção oferecida pela mata dos morros, e muitas vezes com a ajuda de fazendeiros que utilizavam seus serviços no comércio. O número de moradores dessas áreas era aumentado por pessoas livres, mas sem dinheiro para morar em outros lugares.
Quando ocorreu o processo de abolição da escravidão, que vai de 1850 (proibição do tráfico de escravos) à 1888 (Lei Áurea), uma quantidade maior de pessoas acorreu à estas favelas, pois nada foi planejado para absorver os ex-escravos na sociedade e os fazendeiros preferiam trazer imigrantes europeus para trabalhar em suas terras.
Pouco depois, entre 1903 e 1906, a cidade do Rio de Janeiro passou por uma reforma promovida pelo presidente Rodrigues Alves, derrubando cerca de 1600 prédios, considerados velhos, que serviam de moradia à população pobre da cidade. Sem alternativa, parte desta população migrou para as favelas enquanto os que possuíam renda um pouco melhor mudaram-se para as zonas oeste e norte.
O problema na cidade crescia, mas nesta época a população Brasileira ainda era predominantemente rural. Este quadro alterou-se gradativamente ao longo do século XX, principalmente devido à industrialização nas cidades e à modernização no campo, pela qual o país passava. O fenômeno chamado Êxodo Rural levou para as grandes capitais uma grande quantidade de trabalhadores que buscavam ganhar a vida nas cidades e na década de 1960 a população urbana ultrapassou a população rural. A população brasileira também crescia a passos largos, saltando de 17.438.434 em 1900 para 70.191.370 de habitantes em 1960. Hoje são mais de 190 milhões.
Os novos habitantes das grandes cidades seguiram o caminho que já conhecemos. Devido às limitações de renda foram morar em bairros mais baratos ou nas favelas que se avolumavam. O poder público cuidou da questão, na maioria das vezes, como caso de polícia, tratando estas regiões como reduto de criminalidade, a exemplo do que era feito no século XIX com os quilombos periurbanos.
Durante as décadas de 1960/70, foram tentadas políticas de remoção de favelas, expulsando moradores de suas casas, alocando-os em bairros distantes de seus trabalhos. Outra iniciativa de vários governos é a urbanização de favelas, oferecendo serviços de saneamento, energia elétrica, asfalto, etc. Mas estas políticas, sem melhora da renda, acabam resultando em remoção, por aumentar o custo de vida dos moradores, que passam a pagar por estes serviços. Energia elétrica é uma realidade comum à população das favelas cariocas, assim como outros serviços, mas nem sempre são pagos, pois os moradores fazem instalações sem as formalidades legais. As casas localizadas em favelas que recebem urbanização tem seu valor aumentado, ficando atraente para seus donos vendê-las e mudarem-se para outro lugar, sem os gastos causados pelas melhorias urbanísticas.
Este é o contexto em que pessoas buscam morar aonde conseguem, mesmo que lhes falte segurança ou permissão.
Bibliografia:
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Campos, Andrelino. Do Quilombo à Favela – A Produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
Castro, Ana Célia Org. Desenvolvimento em debate: Paineis do desenvolvimento brasileiro II. Rio de Janeiro: Mauad: BNDES, 2002.
Fragoso, João & Florentino, Manolo. Uma sociedade comprometida com a exclusão.
Fundação João Pinheiro. Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil / Fundação João Pinheiro,
Centro de Estatística e Informações. 2. ed. - Belo Horizonte, 2005.
Valladares, Lícia do Prado. Passa-se uma casa – Análise de programa de remoção de favelas do Rio de janeiro. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1980.